O aborto está cada vez mais na boca de todes. Na boca de quem o pratica e de quem não, na de médicos e jornalistas, de feministas e de antidireitos. A partir das jornadas de 13 de junho (13J) e 8 de agosto (8A) na Argentina, a maré verde começou a se espalhar pelo continente. Mas quem está colocando o corpo na luta para garantir mais abortos seguros são as jovens feministas organizadas. Do Peru, Chile, Argentina e Uruguai, elas nos contam nesta reportagem como vêm acompanhando a decisão de abortar em seus países.
A América Latina e o Caribe têm a taxa de abortos mais alta do mundo, segundo dados do Instituto Guttmacher. A região se divide em alguns poucos países que o legalizaram (Cuba, Uruguai, Porto Rico e a Cidade do México), e outros tantos que penalizam a prática completamente (El Salvador, Honduras, Nicarágua, República Dominicana, Haiti e Suriname).
Entre os dois extremos, os demais países aderem à despenalização parcial ou por causas previstas em lei (estupro, malformação do feto ou risco de vida da mulher). Ainda assim são lugares onde é comum (em alguns mais, em outros menos) que obstáculos burocráticos impeçam a realização do aborto dentro dos prazos legais, que seja exigida comprovação do estupro ou que prevaleça a objeção de consciência, unida à moral religiosa e à ambiguidade por parte do sistema de saúde para definir “risco de vida ou saúde”.
Nesse contexto, 97% das mulheres da América Latina e do Caribe vivem em países com leis de aborto restritivas; e 60% dos abortos na região são realizados de forma insegura. A região também é líder mundial nas taxas de gravidez não planejada.
O trabalho é imenso
Algumas das coletivas e redes que trabalham para oferecer informação e acompanhar pessoas que decidem abortar no continente são as Socorristas en Red, na Argentina, Serena Morena, no Peru, Con Amigas y en la Casa, no Chile, Las Parceras, na Colômbia, Ecuménicas por el Derecho a Decidir, em Honduras, 28 Lunas, na República Dominicana, Las Comadres, no Equador, e Mujeres en el Horno, no Uruguai.
As feministas organizadas concordam que a primeira barreira para realizar um aborto é o desconhecimento. Há muita informação na internet, mas nem sempre ela é confiável; e o mesmo vale para as orientações dadas por quem vende o medicamento de forma clandestina nas ruas. Além disso, o silêncio, a falta de companhia e compreensão, a sensação de que não há outras passando pela mesma situação e o medo de ser presa não ajudam.
Apesar de todas essas barreiras, uma pessoa que quer abortar, aborta. E faz isso se expondo à clandestinidade insegura, à criminalização (penal e social) e ao abandono do Estado. Agora, quando a mulher é rica, tudo muda. Os recursos econômicos, a contenção emocional, os hospitais particulares e as viagens ao exterior sempre solucionam tudo.
Mas quando uma mulher aborta na América Latina e é pobre, aí começam os problemas. É o caso de Teodora, de El Salvador, condenada a 30 anos de prisão por um aborto involuntário ao lado“das 17” mulheres (em abril de 2018 já eram 24) que passaram pelo mesmo tipo de criminalização no país. Também é o caso de milhares de mulheres que enfrentam a violência do mercado ilegal, das clínicas clandestinas e da rejeição da família.
Cada país tem sua particularidade. No Chile, o medicamento para abortar é restrito exclusivamente ao uso intra-hospitalar. Não está disponível em farmácias nem mesmo com receita médica. Já no mercado ilegal, uma dose completa de misoprostol pode chegar a custar um salário mínimo chileno. Desde agosto de 2016, a rede Con las Amigas y en la Casa acompanha abortos e oferece informação em quase todas as regiões do país. Também orienta as mulheres para que não sejam enganadas ao comprar no mercado ilegal e defendem que nenhuma mulher deveria deixar de abortar por não ter dinheiro suficiente.
No estado de Tucumán, região noroeste da Argentina, a organização Socorro Rosa (que faz parte da rede nacional Socorristas en Red) possui 11 integrantes, em sua maioria jovens lésbicas. Sua “principal arma é o amor pelas mulheres e entre mulheres” e elas abortam “em manada e irmanadas”. Malena, uma das integrantes, afirma que “em Tucumán, a mulher que quer abortar, consegue. É um ‘segredo’ de conhecimento público”. A questão é se esse aborto é seguro ou não. Outras barreiras no estado são a ausência de educação sexual integral, o acesso nulo a métodos anticoncepcionais em hospitais públicos e a intromissão do discurso religioso nas instituições educacionais.
Colaboradoras da Serena Morena, em Lima, no Peru, contam que, embora o medicamento possa ser conseguido nas farmácias com receita médica, o mercado ilegal tem muito peso. “Nas clínicas clandestinas houve casos de perfurações do útero, estupros de mulheres, coisas absurdas. Muites ginecologistas e especialistas são uma vergonha, lucram com a desinformação das mulheres.” O jogo da dupla moral é permanente: as mulheres não podem denunciar o que aconteceu com elas porque, para a lei, elas também cometeram um crime.
Com uma Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez vigente desde 2012, a situação no Uruguai é bem diferente. Qualquer mulher uruguaia pode abortar com até 12 semanas de gestação (14 em caso de estupro e sem limites em caso de risco de vida da mulher ou anomalias fetais), mas ficam de fora aquelas que extrapolam esse prazo ou as migrantes com menos de um ano de residência no país. Desde 2014, a organização Mujeres en el Horno administra uma linha telefônica que oferece informação e acompanhamento.
Segundo Andrea e María José, o fato de “a lei não ter um orçamento designado” e sua pouca difusão são as principais limitações que as mulheres encontram quando decidem abortar. “Muitas mulheres telefonam sem saber nem por onde começar”. Pensam, por exemplo, que precisam ir a uma clínica especial, quando na verdade basta procurar atendimento médico comum. Além disso, por lei, a mulher deve apresentar seu caso perante um grupo de especialistas e, durante o processo, “refletir por cinco dias” para ratificar sua decisão, o que pode estender o prazo e fazer com que ela perca a janela de 12 semanas.
Outra barreira para as mulheres uruguaias é o fato de não terem liberdade para escolher o método ou o lugar mais conveniente e seguro para elas. Os abortos só são feitos com comprimidos (que juntamente com a aspiração uterina a vácuo são os métodos mais seguros e empregados mundialmente) e é sempre feito em casa (quando deveriam ter o direito de realizá-lo no hospital se preferissem). A objeção de consciência, declarada por 40% dos e das profissionais do país; a objeção de ideário (quando a instituição se recusa a realizar abortos), declarada por dois serviços de saúde nacionais; a penalização cultural do aborto (que continua vigente no código penal); e o acesso inexistente em zonas rurais, também são parte dos obstáculos encontrados no Uruguai, apesar de a lei existir há sete anos.
O que é o acompanhamento feminista?
Para as acompanhantes entrevistadas, é não virar as costas a quem precisa interromper uma gravidez. É ser movida pelo desejo de acompanhar a decisão de uma companheira e assegurar que tenha um aborto CUIDADO e seguro. Como diz o lema de Con las Amigas y en la Casa: “Uma mulher que quer abortar e entra em contato conosco, aborta”. É ouvir com respeito, empatia e sem julgamento, oferecendo segurança para diminuir a pressão e a angústia geradas pela clandestinidade, e politizar o peso da culpa que recai sobre as mulheres socialmente ao tomarem decisões autônomas sobre seus corpos. É permitir uma comunicação fluida, ouvir a voz das mulheres, perguntar como estão se sentindo. É tomar juntas uma decisão pessoal, fazendo do individual uma aposta política coletiva.
Um ato extremamente revolucionário: mulheres que se unem a outras mulheres para decidir com autonomia sobre seus corpos. Mitos como “sou uma mulher ruim” ou “estou sozinha” são derrubados e as violências sofridas são colocadas em palavras. Um ato que vale por mil atos. “Com o aborto, contestamos o lugar de mãe que corresponde à mulher na sociedade machista. Nós não estamos abaixo de ninguém, e nossas decisões devem ser respeitadas”, asseguram as integrantes da Serena Morena.
A pessoa que quer abortar entra em contato com alguma das redes ou coletivas de seu país e pede informações. Às vezes tudo é esclarecido com um telefonema, mas também se organizam encontros pessoais e seguimentos. A Serena Morena prefere as reuniões em espaços públicos, para “tirar o aborto do âmbito privado”. Con las Amigas y en la Casa faz um acompanhamento telefônico quando a mulher está longe ou paga a passagem se ela preferir viajar; Socorro Rosa Tucumán organiza encontros fixos semanais, onde as mulheres que abortam se conhecem. Mujeres en el Horno acompanha por telefone a mulher que está abortando em casa, por mais que a lei uruguaia a ampare e ela tenha consultado um médico.
Assim vai sendo gestada o que foi chamado de uma “engenharia feminista mulheril”, compartilhando informação sobre como fazer um aborto: com que medicamentos, quando tomar, onde é melhor fazer, se o sangramento e a dor são normais, como detectar sintomas de emergência, o que fazer quando se vai para o hospital. Tudo fica à disposição para que a mulher se sinta cuidada durante o processo. E, se ela sofreu alguma violência de seu companheiro ou companheira, ou do sistema médico, recebe também informação e apoio para fazer a denúncia.
Com estas ações diretas, as feministas organizadas estão “tirando o aborto do armário”, desestigmatizando-o, humanizando-o e permitindo que mais mulheres contem suas experiências. Estão interpelando a hegemonia médica e cuidando da vida e da saúde de quem aborta, ajudando a evitar o aumento da mortalidade materna em seus países e popularizando o uso de métodos seguros com medicamentos de uso cientificamente comprovado.
Segundo os dados de Socorristas en Red, a cada ano menos mulheres acompanhadas pela rede procuram atendimento médico de urgência. “Acreditamos que é porque aprendemos a acalmar ansiedades por sinais de alerta que nem sempre se confirmam”. Porque um aborto que não causa complicações físicas, mas sim emocionais, não é um aborto seguro.
Virgem Maria 2.0
Colocar o corpo na luta para garantir o aborto livre e seguro também é estar na mira dos antidireitos. O perigo é lido nas redes sociais e percebido nas ruas. É muito comum que as redes e linhas de acompanhamento na América Latina recebam ameaças de trolls e antidireitos nas redes sociais, assim como sofre violência física quem se manifesta publicamente a favor do aborto. São exemplos disso as três mulheres esfaqueadas na Marcha pelo Aborto Livre, no dia 25 de julho de 2018, no Chile, as ameaças de morte contra a ativista brasileira pelos direitos reprodutivos Débora Diniz e as tantas outras mulheres argentinas agredidas na rua e em suas casas por usar o lenço verde. E não são os únicos.
Diante dessa realidade, as estratégias de proteção coletiva são tão diversas quanto as próprias coletivas. “Nós decidimos não responder, porque quando um cara diz alguma coisa no Facebook, 120 mulheres caem matando. Nós nos defendemos umas às outras. Quanto mais formos e mais visibilizadas, mais seguras estaremos”, afirmam as integrantes do Con las Amigas y en la Casa.
Mas Socorro Rosa tem outro relato. No dia 8 de março de 2017, elas fizeram uma performance simbólica durante a marcha e a greve geral de mulheres. A “Virgem Maria” abortava “o patriarcado e suas instituições misóginas, o casamento, a maternidade e a heterossexualidade obrigatórias”, disse Malena. Tudo transcorreu nas ruas de Tucumán, um estado pequeno que se declarou “pró-vida” através de uma resolução de uma “câmara de deputados provinciana e principista” em agosto de 2018.
O que se seguiu foi uma perseguição promovida por grupos antidireitos, com a divulgação pública dos nomes, telefones e endereços das socorristas, e a incitação ao ódio e à violência. As integrantes da coletiva tiveram que sair do estado por um mês e foram denunciadas, por representantes da Igreja, ao Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo por “afetar a moral dos crentes católicos” com suas ações.
De uma forma ou de outra, os e as antidireitos e fundamentalistas religiosos estão à espreita, querendo deter os pequenos avanços que as feministas conquistam com anos de luta e resistência. É o que fazem, por exemplo, os médicos que alegam objeção de consciência (muitas vezes de forma maciça nas instituições) para não realizar abortos. Prevendo isso, Con las Amigas y en la Casa criou o projeto OLA: Observadoras da Lei do Aborto, para saber quais centros de saúde garantem o direito e quais não, e quantas mulheres não puderam se valer das três exceções aprovadas por lei.
Ação urgente
Nem sempre se ergue o véu para ver tudo o que está escondido por trás do aborto inseguro; para algumas, ele é apenas a ponta do iceberg do sistema patriarcal-capitalista. Não é à toa que as mulheres mais criminalizadas sejam as pobres e as racializadas; e para as feministas jovens organizadas, a luta pelo aborto livre é crucial. Ainda que para muitas o aborto estatal, como no caso do Uruguai, não seja o horizonte ideal (porque a legalidade não garante um aborto seguro), o que é, sim, fundamental é sustentar a luta legal e cultural, discutir o assunto e chegar a mais mulheres.
É por isso que em todos os países se está germinando uma rede, uma coletiva ou uma linha telefônica que oferece informação, acompanhamento, segurança, confiança e empatia às mulheres que decidem abortar. São as feministas organizadas que colocam o corpo na luta para visibilizar isto e para exigir que sejam cumpridas as pautas mínimas que um Estado democrático deve garantir: saúde, segurança e autonomia para as mulheres. Essas iniciativas são capazes de incluir o aborto nas agendas dos feminismos de cada país e demonstram reiteradamente que o verdadeiro aborto seguro, livre e cuidado é aquele concebido pela perspectiva feminista. São como sementes que se espalham pelas cidades grandes e pequenas, no interior dos países e em suas periferias. Prova disso é que muitas das mulheres que recebem ajuda das feministas aborteiras acabam se unindo à luta.
por: Flor Pagola