As estratégias do ativismo contra o LGBTIQ+-ódio na América Latina

Geo González e Agustina Ramos / Agencia Presentes

16 Maio 2023


No dia 17 de maio é celebrado o Dia Internacional de Luta contra o LGBTI-ódio: seu objetivo é chamar a atenção para as violências e a discriminação que as pessoas LGBTI+ e dissidentes da heterocisnorma vivem. Em 2004 a Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou esta data em comemoração ao dia em que a homossexualidade deixou de ser considerada uma patologia. Em 1990 ela foi retirada do manual de classificação de doenças mentais da Organização Mundial da Saúde (OMS).

A América Latina se posiciona como um dos territórios com maiores avanços recentes. Nos últimos cinco anos na Argentina, Chile e Uruguai foram aprovadas leis em favor das pessoas trans e não bináries. Na Argentina, por exemplo, a Lei de Identidade de Gênero, uma lei de cota laboral para travestis e trans [Ley N° 27.636 de Acceso al Empleo Formal para personas Travestis, Transexuales y Transgéneros "Diana Sacayán-Lohana Berkins"] e o documento de identidade não binárie. No Uruguai, a lei integral para pessoas trans [Ley Nº 19.684 - Ley integral para personas trans] busca uma reparação histórica. O casamento igualitário é uma realidade em todos os estados mexicanos e também nesse país existe uma disputa legislativa para proibir as chamadas "terapias de conversão".

Mas as realidades são muito díspares, porque a região é a mais desigual do mundo. Em todos os países persistem índices elevados de violência baseada no ódio e preconceitos contra as pessoas da diversidade sexual. As pessoas trans ainda têm uma expectativa de vida entre 35 e 40 anos.

A Presentes entrevistou ativistas da região para saber o que significa comemorar esta data e saber quais são as urgências e necessidades não resolvidas.

Bianka Rodríguez, diretora executiva da ILGA-LAC (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersex da América Latina e o Caribe) e da organização salvadorenha COMCAVIS; Xoch Quintero e Leo Moran, integrantes do coletivo Hola Amigue no México; Yren Rotela, fundadora da Casa Diversa no Paraguai; e Michel Riquelme, Coordenador Executivo da Organização Trans Diversidades (OTD) no Chile, contaram quais estratégias utilizam para enfrentar as violências.

“A região latino-americana se caracteriza historicamente por não realizar a devida proteção e cumprimento dos direitos das pessoas LGBTI+, refletindo nas situações mais cotidianas. Esta data é uma oportunidade para que os ativismos estabeleçam um discurso de denúncia e mudança em práticas históricas”, afirma Bianka Rodríguez, ativista trans e diretora executiva da ILGA-LAC e à frente da organização salvadorenha COMCAVIS.

Rodríguez estava à frente da organização com outres ativistas da IX Conferência Regional da ILGA LAC, realizada em abril deste ano em La Paz, Bolívia. Na conferência, além de denunciar as violências cotidianas em todos os países, insistiu-se na necessidade de interseccionar as lutas e as camadas identitárias. Esta é uma das estratégias de vários ativismos: unir esforços com outros setores - o sindical, os feminismos, os coletivos de migrantes, povos indígenas e do campo - para enfrentar a onda neoconservadora e os fundamentalismos religiosos.

Segundo a base de dados da ILGA, sessenta e quatro países mantêm políticas de criminalização de pessoas com orientação sexual e/ou identidade de gênero não normativas. E enquanto a América Latina tem sido uma das regiões com mais avanços em direitos humanos para as pessoas LGBTI+ isso não garante uma vida livre de violências.

“Nenhuma lei será suficiente enquanto ainda formos assassinades.”

Michel Riquelme, coordenadore da Organização Trans Diversidades (OTD) do Chile, concorda com Bianka Rodríguez ao dizer que esta data consegue destacar as urgências e enfatiza a importância de que os ativismos se mantenham organizados.

“Ano após ano, o ódio tira a vida de centenas de pessoas na região e é geralmente normalizado. Esta data nos lembra que, apesar dos possíveis avanços em direitos, nenhuma lei será suficiente enquanto continuarmos sendo assassinades e violentades por nossas orientações sexuais, identidades de gênero, expressões de gênero e características sexuais”, diz Riquelme.

De acordo com dados da ILGA, o México, a Bolívia, o Equador e algumas jurisdições da Argentina e do Brasil são os lugares que explicitamente contam com proteção constitucional contra a discriminação baseada na orientação sexual. No entanto, a defesa jurídica contra a discriminação continua sendo uma questão pendente nas constituições.

Quanto aos crimes por preconceito, os Estados continuam em dívida com a investigação e sistematização de informações com dados diferenciados, para conhecer a dimensão social destes crimes contra as pessoas LGBTI+.

As organizações ativistas estão se responsabilizando por fazer esse trabalho e os dados nem sempre estão atualizados. Mas quase todos esses observatórios concordam que a maioria das vítimas na região são mulheres trans e travestis que exercem o trabalho sexual.

Senso de comunidade e redes de apoio

Os ativismos da região também encontram nesta data a oportunidade de continuar com estratégias para enfrentar as violências.

Es ativistas Bianka Rodríguez, Xoch Quintero, Leo Moran, Yren Rotela e Michel Riquelme concordam que o trabalho deve ser coletivo e a incidência comunitária, a criação de alianças estratégicas e redes de apoio são vitais para enfrentar as violências e alcançar “o cumprimento dos direitos LGBTI+”.

Por exemplo, na Cidade do México, o Hola Amigue trabalha a partir de um senso de comunidade e redes de apoio, sobretudo em datas importantes para a população trans e não binárie como o Dia da Visibilidade Trans em 31 de março e o Dia Internacional da Memória Trans em 20 de novembro.

No Hola Amigue são organizados eventos on-line e presenciais de escuta e encontros, onde são fornecidas orientações e informações. Também são criadas alianças com outras organizações que trabalham com o acesso aos direitos humanos, são construídos espaços de lazer com poesia junto ao Juntrans, um local dedicado à arte, e são promovidos festivais.

O Hola Amigue foi uma das organizações que impulsionou a tomada do espaço público com pinturas gigantes em ruas emblemáticas onde houve casos de violência ou fora do registo civil para exigir que as pessoas não bináries no México tenham o direito à identidade garantido. Também participam de marchas para acompanhar as demandas das infâncias trans “para incidir na transformação de narrativas”, afirma Xoch Quintero.

Como o Hola Amigue, na OTD Chile também acontecem encontros com pessoas trans cujo objetivo é construir “espaços de cura comunitária onde as pessoas podem encontrar o apoio que não têm em seus contextos cotidianos”, explica Michel Riquelme.

Um abrigo para pessoas trans

No Paraguai, um grupo de seis pessoas autogerencia a Casa Diversa, o primeiro abrigo de realocação para as pessoas da diversidade sexual vítimas de violência ou em situação de rua do país. O abrigo foi criado há seis anos, impulsionado pela ativista Yren Rotela. Atualmente, vinte pessoas moram na casa e recebem comida, abrigo, apoio, acompanhamento jurídico, psicossocial e de saúde mental. Também frequentam espaços de formação, de educação e de atividades artísticas.

“Nós nos apegamos à arte como uma ferramenta transformadora. No espaço há cursos artísticos (canto, dança, teatro, etc.) para atenuar essa violência que vivemos há tanto tempo”, conta Rotela. Sobre o espaço, ela comenta que o seu objetivo é “dar à companheira um lar, educação e a possibilidade de serem empreendedoras porque elas têm capacidades, elas podem. Sonhamos em ter uma família e isso representa a Casa Diversa: um lar que por muito tempo nos negaram”, acrescenta.

Proteção às vítimas de violência

De El Salvador, Bianka Rodríguez conta que outra estratégia frente às violências é “interpelar os atores políticos que põem em risco o avanço dos direitos humanos”, sobretudo aqueles que legislam com base em boatos, desinformação e crenças religiosas.

A COMCAVIS, organização que Bianka lidera há 15 anos, concentra-se principalmente na proteção de vítimas de violência e deslocamento forçado, bem como na promoção do empoderamento comunitário.

Construção de conhecimento para desarmar preconceitos

Entre as ações que es ativistas levam adiante estão “a elaboração de relatórios e pesquisas de caráter qualitativo e quantitativo, que permitem coletar dados precisos de situações que nenhuma outra entidade pública e/ou privada coleta”, explicou Rodríguez. Esta informação contribuiu “para a construção de propostas de políticas públicas que transformem a realidade social e eliminem a discriminação contra orientações sexuais e identidades de gênero diversas”, acrescentou.

Na COMCAVIS também são realizadas atividades para “ampliar as ações de incidência”. Nesse sentido, foram assinados acordos de colaboração com instâncias públicas e privadas para a promoção dos direitos LGBTIQ+. Entre eles, uma carta compromisso com a Procuradoria de Defesa dos Direitos Humanos de El Salvador para promover o respeito e a não discriminação contra as pessoas LGBTIQ+. Também acordos com o setor privado para “a promoção da reinserção laboral sem discriminação de pessoas trans e LGBTIQ+”. Além disso, são feitos acompanhamentos no processo de mudança de nome de pessoas trans em El Salvador, ao prestar assessoria jurídica e estar presente em cada caso, enfrentando os desafios institucionais e realizando litígios estratégicos.

Michel Riquelme, que coordena a OTD Chile, concorda com Bianka ao dizer que “a produção de pesquisas e conhecimentos feitos pela própria população trans é fundamental para mudar os paradigmas da violência que nos afeta”.

Riquelme acrescenta que as definições e a visão “exógena e patologizante sobre as pessoas trans continua sendo hegemônica. Isso é o que temos que conseguir mudar graças à construção de nossas próprias definições, experiências e formas de nos nomear”.

Em 2017, a OTD Chile realizou a Encuesta T, a primeira pesquisa massiva da população trans no Chile que ajudou a impulsionar a aprovação da Lei de Identidade de Gênero. Hoje, a organização trabalha em conjunto com a Fundación SOL na primeira pesquisa focada na qualidade do emprego para a população trans, travesti e não binárie no Chile, a fim de gerar dados para a construção de políticas públicas para diminuir a desigualdade no mercado de trabalho dessas populações.

Riquelme soma a dimensão de cuidados nas organizações como parte das estratégias utilizadas. “Que es ativistas tenham condições de trabalho dignas e formem noves ativistas é algo crucial para que no futuro continuem existindo pessoas dedicadas a afrontar as violências contra a nossa comunidade”.

Dívidas e urgências

Para Bianka Ramirez, uma das dívidas fundamentais é reconhecer e garantir “os direitos das pessoas trans e pessoas não binárias e posicionar as suas lutas. A situação atual gera limitações no cumprimento de direitos, tais como o direito ao nome e ao gênero, conforme a identidade, gerando ciclos de violência estrutural e sistêmica”, disse.
De acordo com os dados da ILGA World, o reconhecimento legal da identidade de gênero ocorre no Brasil, Argentina, Uruguai, Colômbia e Equador. No México, o trâmite é possível, mas possui formas diferentes segundo o estado. Na Bolívia e no Chile também existe o reconhecimento, mas com requisitos, e no Panamá e Cuba também, mas as restrições são de índole médica e/ou cirúrgica. Já no Paraguai, Venezuela, Guiana, Suriname, Guatemala, Honduras, El Salvador e Nicarágua não é possível fazer a mudança de gênero nos documentos de identidade.
O tratamento e o cuidado com as pessoas trans e não binárias nos serviços de saúde são outras dívidas que Quintero destacou. E também advertiu sobre “o aborto, o desabastecimento de medicamentos, tanto para afirmação de gênero como também os psiquiátricos”. Leo Morán, também integrante do Hola Amigue, acrescentou que as pessoas não binárias têm “ainda mais complicações para acessar os tratamentos de afirmação de gênero porque as clínicas públicas que existem nos colocam filtros super binários”.

O combate aos discursos de ódio, a implementação da Educação Sexual Integral e o respeito aos direitos das pessoas do coletivo travesti, trans e não binárie, em especial das infâncias, foram outras dívidas importantes que es ativistas citaram. Sobre isso, Michel indicou que uma “política prioritária é a proteção de menores trans nas escolas do país, frente ao aumento de suicídios neste grupo”.

Do Chile, Riquelme também colocou o foco na necessidade de criar uma institucionalidade por parte do Estado “para atender as problemáticas específicas da população LGBTIQ+ e a ampliação de definição de temas de gênero”. Além disso, reconheceu que sem financiamento não há política possível: as normativas de avanço em direitos devem ter orçamento.
Sobre a agenda de urgências para o coletivo na região, Rotela sintetizou em: “Os direitos básicos que os seres humanos necessitam para viver dignamente e se desenvolver, como a educação, a saúde, a justiça, o acesso econômico, o trabalho, o reconhecimento da identidade, a união civil e a proteção total dos direitos humanos”.


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