Mujeres negras: resistencia ante el exterminio

Ana Carolina Lourenço

28 Julho 2020

Com certa frequência me perguntam como me tornei feminista. A pergunta é comum para as mulheres negras brasileiras. Afinal, como nós nascidas negras no último país que aboliu a escravidão legal nas Américas, mulheres em uma sociedade recordista de feminicídios, e em sua maioria pobres em um sistema que criminaliza a pobreza – conseguimos nos enunciar como feministas?


Já respondi de diferentes maneiras essa pergunta. A resposta que eu mais dei foi: quando adolescente comecei a participar do movimento estudantil e naquela época estávamos vivendo o início, da hoje, mais massiva política de reparação voltada para população afro-brasileira, as políticas de cotas e reservas de vagas nas universidades públicas e escolas federais de referência. Foi neste ambiente, fiz parte do grêmio, conheci Sueli Carneiro, tive meu coração dilacerado de dor e amor ao me debruçar nas 950 páginas de Um Defeito de Cor da Ana Maria Gonçalves. Dancei ao som de Ivone Lara e Elza Soares. Aprendi inglês só para ler os outros livros da Toni Morrison depois da revolução que foi ler O Olho Mais Azul. Foi nessa época também que fiquei obcecada pela experiência das mulheres afro-cubanas que lideraram as campanhas que erradicaram o analfabetismo – e anos depois fui parar na Ilha. Tudo isso é verdade, mas mesmo assim sempre me soa artificial. Pois eu sei que me tornei quem sou por causa das mulheres da minha família e do território em que cresci.


Cresci em meio ao amor e o cuidado de muitas mulheres negras. Uma bisavó, duas avós, uma tia avó, oito tias de sangue, uma tia escolhida e uma mãe. Uma família afro-brasileira que depois de múltiplas experiências de migrações internas se fixaram na Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio de janeiro, em busca de moradia e trabalho. Neste território, construíram casas com quintais, plantaram e recriaram as suas comunidades. Até o início da minha vida adulta eu morei a maior parte do tempo apenas com meus pais e irmão. Porém, cresci na rua da minha família estendida materna e moramos com minhas avós em pequenos períodos. Sou feminista porque passei minha infância e adolescência sendo preenchida pelas memórias destas mulheres e apreendendo as suas lições de autodeterminação, resistência e luta.


Com a minha bisa Flor convivi até os 15 anos, quando nas palavras dela precisou partir, “pois era flor e não semente”. Nascida no início do século XX em Salvador, Bahia, foi dela que tomei o gosto pelas mesas redondas, pelos cheiros e sabores dos preparos dos alimentos afro-brasileiros e pela necessidade de viver a vida em comunidade “Carolina, sai um pouco para ver as modas e ser vista”. Da vovó Lica, minha avó paterna, com quem morei por alguns meses enquanto minha casa estava em obra e com quem passei todos os verões da minha infância. Ela o nó de uma rede familiar e comunitária gigantesca, foi quem me iniciou na mediação de conflitos, diplomacia e na necessidade de construirmos horizontes comuns. Foi uma das primeiras a identificar meu interesse pela justiça social e debates políticos e em meio ao fluxo de pessoas em sua casa, com maestria, abriu espaços e me apresentou a complexidade do mundo. Seu funeral em 2017 foi um marco na vida de sua comunidade, da minha família e na minha própria vida. Sua passagem significou para mim a certeza que de que estava pronta, como somente as relações saudáveis podem nos dar.


Sou também a feminista interessada na cultura da outra e que acredita que o ímpeto de mudar o mundo vem acompanhado do desejo de conhece-lo e interpreta-lo seguindo os passos das mulheres da minha família. Minha Vó Creuza, mãe da minha mãe, ainda me ensina sobre o poder da reinvenção, de se jogar no mundo e de conhecer através dos pés. Ela que depois das filhas grandes, da aposentaria e da morte prematura do meu avô saiu viajando pelo Brasil com uma polaroid, viveu novos amores, voltou para escola e me convidou para sua formatura. Com quem eu aprendi que com a mesma naturalidade com que se faz o melhor mingau do mundo se fala sobre a própria sexualidade.


Quanto as vozes das minhas tias e mãe, como diz Conceição Evaristo, estas ecoam “o ontem – o hoje – o agora”. São o primeiro grupo que eu recorro quando preciso relembrar que apesar do nosso mundo estar se despedaçando somos nós, mulheres negras, portadoras de um projeto revolucionário. São minha mãe e minhas tias que me ensinam que a luta pela emancipação da mulher negra não tem como finalidade apenas criar mulheres negras brilhantes e bem sucedidas, mas, sobretudo, gerar transformações na própria noção de sociedade.


Foi nos olhos, entre as conversas e os silêncios das minhas bisa, vós, tias e mãe que aprendi todos os desafios que estruturam as experiências das mulheres racializadas em uma sociedade como brasileira. Da esterilização em massa como política pública, do aborto não seguro, da violência obstétrica e da maternidade interrompida precocemente, que traumatizaram as mulheres da minha família emerge para mim a urgência da justiça reprodutiva. São nas marcas deixadas pelo exaustivo e precário mundo do trabalho que não remunera, que sobrecarrega, que assedia e que mata - que nasce a necessidade de um novo formato de reprodução da vida. Nos relatos da sexualidade impedida, dos ataques e dos amores mal vividos. Das políticas públicas criadas para produzir barreiras, destruição e para matar nossos meninos e meninas. Vejo racismo e sexismo, isso aprendi anos depois das primeiras lições.


A criminosa experiência de tráfico e escravidão que marcou a chegada das primeiras mulheres africanas nas Américas continuou sendo atualizada mesmo depois da abolição das escravizadas. O Brasil, assim como muitos outros países do nosso continente, estabeleceu uma política de extermínio racista a partir das últimas décadas do séc. XIX que tinha como foco impedir a reprodução das mulheres negras e produzir a morte da população negra. Os principais teóricos do pensamento social brasileiro no início do século XX afirmavam que a população negra brasileira estaria extinta em 2012. Erraram. Hoje o Brasil tem a maior população de descendentes africanos fora de África. Há afrodescendentes em todo continente americano, um grupo que cada vez mais cresce. As mulheres afrodescendentes, sem dúvidas, foram a chave contra o extermínio.


O dia 25 de julho é sobre construir estratégias para fortalecer as mulheres afrodescendentes nas suas lutas contra as forças da morte e extermínio. É um chamado a cooperação. E uma data para celebrar as lições de vida produzidas por mulheres como as da minha família. Elas me ensinaram, me protegeram e defenderam a minha humanidade, e enquanto isso assumiram papéis de responsabilidade com toda a comunidade e me libertaram - nos libertaram.


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