Há quase oito meses, a Nicarágua passa por uma crise política, econômica e social. A maneira despótica com que Daniel Ortega e sua esposa, a vice-presidenta Rosario Murillo, governam o país há onze anos levou a população a se cansar de tanta repressão, morte e impunidade.
Desde o princípio, as feministas estiveram de olho em Daniel Ortega, por ter assediado sexualmente sua enteada Zoilamérica Narváez. Há muitos anos elas vêm denunciando que seu governo é misógino e que atenta contra a vida. Hoje são as mulheres e o movimento feminista que sustentam, em diversas frentes, as resistências sociais contra os atropelos do estado nicaraguense.
"Com Daniel Ortega, sempre houve uma disputa pelas ruas", afirma Dolly Mora nesta entrevista, referindo-se ao caráter repressor deste governo. Dolly é uma jovem feminista integrante da Agrupación de Mujeres Trans y Culturales e da Articulación Nacional Feminista, que conglomera a grande coletividade de feminismos que existem no país. A Alianza Universitaria Nicaragüense também faz parte dessa luta. Como se vive essa crise no país, como se constrói a resistência e que lições têm para compartilhar com o resto do continente são algumas das questões que destrinchamos nesta conversa com Dolly...
COMO FOI A EVOLUÇÃO DESTA CRISE?
No dia 18 de abril estouraram os protestos que o governo começou a reprimir, e desde estão não pararam mais. As principais universidades do país foram ocupadas, depois começaram as dinâmicas dos tranques (bloqueios usando pedras, troncos e paralelepípedos para impedir a passagem de veículos) em Manágua e outros departamentos (estados). Simultaneamente, foi criada a Mesa de Diálogo Nacional (composta pelo governo e estudantes, setor privado e sociedade civil, com a Igreja como mediadora), na qual o governo não tem demonstrado vontade política para negociar uma saída da crise. O que o povo mais quer é a saída de Daniel Ortega. Não podem continuar o mandato sendo responsáveis por mais de 500 mortos e 552 presos políticos, a maioria jovens universitaries, camponeses ou de bairros humildes. Evidentemente tem uma conotação de classe, apesar de eles se apresentarem como um governo socialista e cristão, como um governo para os pobres. Mas é às pessoas pobres que eles vêm matando, prendendo, perseguindo; porque existe uma política de perseguição por parte da Polícia nacional contra todos os atores, e particularmente contra jovens pobres das comunidades.
COMO FOI O PROCESSO PRÉ-CRISE? VOCÊS PUDERAM ADVERTIR O QUE ESTAVA POR VIR?
O governo de Daniel Ortega tinha a característica de que, quando um grupo organizado da sociedade civil convocava para uma atividade pública, eles convocavam para uma contra-atividade. Se havia uma manifestação, eles convocavam uma contramanifestação. Também houve um tempo em que alguns partidos da oposição faziam as "quartas-feiras de protesto", e então houve picos de violência e de enfrentamento entre o governo e a força opositora. Nós, feministas, sempre dissemos que, todo ano, quando marchamos no dia 8 de março, por exemplo, eles põem um cordão de policiais femininas antimotim, que são as forças especiais, para não podermos marchar. Já havia uma falta de respeito à livre mobilização e ao protesto, que são constitucionalmente reconhecidos no país. Com Daniel Ortega, sempre houve uma disputa pelas ruas.
Tudo isso teve início quando nós, jovens, começamos a sair às ruas para fazer protestos e piquetes pela falta de resposta do governo diante da queimada descontrolada da reserva biológica Indio Maíz. Depois, muito mais gente foi às ruas quando saímos para protestar por causa da reforma do governo no Instituto Nicaragüense de Seguridad Social (INSS). No dia 18 de abril, quando fizemos o protesto do INSS, tudo estourou. Nosso grupo de jovens estava em Camino Oriente protestando e chegaram os paramilitares da Frente Sandinista batendo na gente, agredindo com paus; roubaram câmeras de jornalistas, houve ataques a manifestantes e jornalistas. Naquele dia, quando a repressão veio com tudo, Daniel Ortega perdeu o custo político e não hesitou em mandar agredir os jovens. Naquele mesmo dia, agrediram a Universidade Centroamericana e no dia 19 de abril todas as universidades amanheceram em insurgência: a UNAN (Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua), a UNI (Universidade Nacional de Engenharia), a Universidade Nacional Agrária, a Universidade Politécnica da Nicarágua. Todas as universidades em greve e protestando. Diante dessas propostas pacíficas, o governo manda as forças policiais antimotim disparar gás lacrimogêneo e balas de borracha. Assim, a repressão foi se intensificando até chegar a matar jovens diretamente, com armas de calibre militar. Nesse ponto, os organismos de direitos humanos, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Anistia Internacional, começaram a apontar as repressões e assassinatos em seus relatórios.
PELO QUE ENTENDO, NÃO EXISTE OPOSIÇÃO NA NICARÁGUA. ENTÃO QUEM LIDERA A RESISTÊNCIA?
O povo. A insurreição que nasce nas ruas vem da força das universidades, mas chega até o povo. Não saímos às ruas defendendo uma agenda universitária, defendemos uma agenda nacional. Ao ver as agressões contra os jovens universitários, o povo começou a “acuerpar” eles. Depois dos primeiros três dias e mais de vinte mortos, as pessoas diziam que Daniel Ortega não podia mais continuar no governo e o clamor popular começou a pedir sua renúncia. Quando foi conformada a Mesa de Diálogo Nacional, a principal agenda era o fim da repressão e a negociação da saída de Daniel Ortega. Mas o fechamento dos espaços é muito delicado, pois os partidos historicamente opositores à revolução social (os conservadorismos) se uniram a este governo da Frente Sandinista de "Liberação" Nacional para reprimir todas as manifestações.
VOCÊ DIZ QUE AS PESSOAS POBRES SÃO AS MAIS AFETADAS NA REPRESSÃO. E O QUE ACONTECE COM AS MULHERES?
Sim, há diferentes tons. A violência contra as mulheres nesse contexto é diferente e mais profunda, porque ao estar nessa trincheira, você não somente se vê exposta à violência física do Estado e dos policiais, como também a suas ameaças de violência sexual. Muitas das mulheres que são presas políticas ou que estiveram em Chipote, na prisão de tortura da polícia, denunciam violência sexual e tortura psicológica com ameaças a seus corpos. Os homens são mortos na batalha, e uma mulher também pode ser morta nos enfrentamentos; agora, quando pegam um homem, eles o torturam mas, a uma mulher, a primeira coisa que dizem é que vão estuprá-la. No entanto, as mulheres estão em todas as formas de resistência: nas ocupações, nos meios de comunicação, no diálogo, nos corpos médicos, nas ruas, na própria "Unidad Azul y Blanca" que acaba de ser conformada, e na Alianza Cívica por la Justicia y la Democracia. As mulheres estão em absolutamente todos os espaços de resistência social, participando ativamente nessa crise.
E o feminismo sempre denunciou Daniel Ortega por assédio sexual no caso de Zoilamérica Narváez; sempre denunciamos que seu governo é misógino e machista, e que atenta contra a vida em geral. Por exemplo, a gente vem historicamente denunciando assassinatos em massa de camponeses que se opõem aos megaprojetos sobre seus territórios. Há casos documentados e denúncias públicas.
POR QUE É UM GOVERNO MISÓGINO?
Desde que Ortega começou sua campanha em 2006, a maior expressão de violência contra as mulheres foi a revogação do artigo 165 do Código Penal, que permitia a figura do aborto terapêutico e esteve por mais de 100 anos na legislatura nicaraguense. A agenda das mulheres não esperava nada de bom do governo de Daniel Ortega. A criminalização do aborto terapêutico condena as mulheres pobres que não têm acesso a esse direito; porque o aborto continua, faz parte da nossa realidade como mulheres, mas quem tem acesso são as que têm mais recursos. É muito difícil que uma mulher do campo, grávida de um feto com malformação congênita, venha para a cidade fazer um procedimento clandestino. E, com sua retórica, sabíamos que a violência estava por vir. Além disso, com os programas assistencialistas ele conquistou a população pobre, porque resolvia a situação imediata, mas não havia políticas públicas que realmente ajudassem as pessoas a sair da pobreza.
QUAIS AS CARACTERÍSTICAS DA RESISTÊNCIA FEMINISTA NESSA LUTA?
Mantivemos nossa agenda fazendo uma grande campanha, "Não há revolução sem a participação das mulheres". É um lema que trouxemos da década de 80 para o presente porque precisamos visibilizar nossa participação em todos os espaços. Por exemplo, vale destacar o trabalho de Las Malcriadas no Facebook, onde visibilizamos cada uma das mulheres sequestradas, desaparecidas e presas políticas. Há também relatos de violência especificamente contra as mulheres: o movimento feminista fez plantão em frente à prisão La Esperanza, que é onde ficam as mulheres presas. A maioria das presas é muito jovem, 18, 20, 25 anos; e a maioria é universitária. Tem também uma senhora idosa com câncer que está em condições desumanas. Por exemplo, na Unidad Azul y Blanca, fazemos presença como movimento feminista, porque não vamos permitir que, em meio a um processo histórico como este, sejamos excluídas dos espaços decisórios mais importantes. E andamos com nossos lenços roxos o tempo todo, em todos os espaços, somos muites. Por exemplo, as pessoas LGBTIQ também tiveram uma participação muito ativa neste processo político.
A IGREJA TEM UM PAPEL MUITO IMPORTANTE NESTA CRISE. COMO TEM SIDO TER QUE MARCHAR JUNTO COM A IGREJA E OUTROS SETORES COM OS QUAIS NUNCA TIVERAM BOM VÍNCULO?
Sim, a Igreja é mediadora do diálogo. No começo, tive certa resistência, por causa da história com a Igreja e porque teve grande influência na criminalização do aborto terapêutico. Mas quando você começa a conhecer os bispos ligados à resistência, eles demonstram uma coerência incrível e põem seus corpos e suas vidas na linha de frente. O monsenhor Báez, por exemplo, tem um compromisso muito tangível nessa crise, você sente o compromisso deles. Dizemos que estamos numa crise contra uma pessoa que está matando a juventude e a Igreja tem um poder histórico muito forte neste país; qualquer coisa que a Igreja puder fazer terá influência. Então nós, feministas, marchamos junto com a Igreja porque a reconhecemos como um ator-chave para sair desta crise, porque temos uma herança católica e a Nicarágua dá muito poder a isso. Além disso, este governo tinha algum respeito pela Igreja, mas não tem mais. Os bispos sofrem ameaças de morte e campanhas de difamação como todes nós. Agora estamos todes assim, mas o verdadeiro diálogo vem depois. Vamos voltar a falar do aborto. Qual será a posição da Igreja?
ME CONTE SOBRE A CAMPANHA DE PROTESTO DO PICO ROJO (BOCA VERMELHA), QUE TEVE TANTA REPERCUSSÃO NACIONAL E INTERNACIONAL
Ah, isso foi ótimo. Marlen Chow, uma feminista histórica da Nicarágua, foi presa com algumas companheiras. Na cadeia, Marlen pinta os lábios e passa o batom para as outras. Nos interrogatórios, a polícia procura descobrir quem financia a resistência, porque eles têm essa narrativa de que é um golpe financiado. Naquele momento, o interrogatório é para você dizer tudo, até o que não sabe. Quando perguntam a Marlen a que organização ela pertence, ela diz que pertence à Associação Pico Rojo, que são todas as que estão presas naquele momento, fazendo referência a Claribel Alegría, uma poeta nicaraguense. Então, quando Marlen é liberada, o episódio se torna uma nova forma de resistência. É descartar a narrativa do governo. Que organização estaria por trás de mim? O que ela está dizendo é que não tem ninguém por trás dela, é o próprio povo dizendo basta. E começamos a viralizar imagens de muitas pessoas com os lábios pintados de vermelho.
É CHAMATIVO O CARÁTER IRÔNICO DESSAS MANIFESTAÇÕES EM MEIO A UM CONTEXTO TÃO DIFÍCIL. COMO VOCÊS CONSEGUEM?
É a mesma coisa que aconteceu com os balões. Como a repressão é tão grande, muitas vezes ir para as ruas não é uma opção. Como protesto, as pessoas soltam balões azuis e brancos, e é ridículo ver os policiais estourando os balões na rua. Nós, nicaraguenses, somos muito criatives. Começou a circular nas redes: "aparecem balões terroristas", "balões financiados pelos Estados Unidos". Um jornalista escreveu: "Nós os deixamos loucos." Usar azul e branco neste momento é sinônimo de crime. Tem também Don Alex, que sempre corre vestido de azul e branco. O homem é preso, sai e volta a correr. O que isso diz é que estamos cansados e vamos continuar, continuar e continuar, até eles irem embora. Mas também nos sustentamos com o humor... os "memes" nos encorajaram.
COMO A JUVENTUDE PARTICIPA?
Muitos dos atores que agora estão se envolvendo não é que tinham apatia política, mas tinham apatia partidária. E com razão! Temos deputados que estão no poder há quase 39 anos, desde a volta da democracia ao país. E as pessoas, a partir de suas perspectivas, estão começando a habitar a política e a ressignificá-la, é uma reapropriação desse processo que é definitivamente histórico. E eu acho que para toda a juventude que compõe esses novos movimentos universitários, que não vem de processos de formação política, esta tem sido uma ótima escola, uma escola nas ruas, resistindo e acompanhando.
PARA TERMINAR, QUE LIÇÕES ESTA RESISTÊNCIA FEMINISTA NA NICARÁGUA ESTÁ DEIXANDO PARA O RESTO DA AMÉRICA LATINA?
Eu acho que a principal lição é que uniu movimentos diferentes, a Unidad Nacional Azul y Blanca está muito forte. Temos agendas e posições muito claras, e tentamos fazer comunicações sempre que há algo importante a dizer, ou que temos que tomar uma posição. Fizemos campanhas de solidariedade internacional bem fortes, teve Grito Feminista pela Nicarágua no México, na Espanha, em El Salvador, na Argentina... Tem havido muita solidariedade feminista com o feminismo nicaraguense e a situação na Nicarágua. Essa solidariedade internacional também colocou a Nicarágua no mapa, porque muita gente não tinha a menor ideia do que estava acontecendo aqui e, graças às conexões dos feminismos com outros movimentos, ajudou a tornar a situação da Nicarágua mais conhecida lá fora.
Eu estive em um encontro do Fundo de Ação Urgente e as companheiras da África estão denunciando os raptos e sequestros das mulheres em seus países, e ficaram impressionadas com a forma como enfrentamos essa crise com tanta força. Para mim, é por causa da nossa história. Muitas das feministas mais velhas fizeram parte da revolução sandinista e na época ajudaram a criar os comitês de solidariedade internacional. Esses vínculos renasceram e voltaram a ser usados. Essa conexão histórica tem sido muito importante. Estamos lembrando ao mundo que "as redes salvam vidas" e que precisamos “acuerparnos” neste moment